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Para além do coração, autorização eletrônica pode salvar quem precisa de transplante

Incalculável. O adjetivo invariável qualifica com precisão a quantidade de brasileiros e brasileiras que poderiam ser beneficiadas com transplantes de pele se houvesse doações suficientes para abastecer os quatro bancos do país que armazenam esse tecido. “Convivemos com o estoque sempre em nível crítico”, resume o médico Eduardo Chem, responsável pelo Banco de Tecidos da Santa Casa de Porto Alegre. O tema ganha destaque nesta sexta-feira, 27 de setembro, que marca o Dia Nacional de Doação de Órgãos e reforça o papel da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, a Aedo, ao assegurar em cartório o desejo de qualquer cidadão ser doador de órgãos. 

O lançamento do formulário ganhou, em abril deste ano, solenidade à altura da importância desse passo para ampliar o número de doadores. Desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Corregedoria Nacional de Justiça, e o Colégio Notarial do Brasil (CNB), foi endossado pelo Ministério da Saúde. De lá para cá, mais de 11 mil pessoas aderiram à Campanha Um Só Coração, que dá nome à iniciativa. Aliás, esse órgão do corpo humano é um dos que costuma logo ser lembrado quando o assunto é transplante, ao lado de rins, fígado, pulmão ou córneas.  

Porém, um único doador pode beneficiar até 30 pacientes que, em muitos casos, aguardam por anos na fila de transplante. Só que nem sempre é possível esperar. “Conseguimos manter um paciente cardíaco ou renal estável por algum tempo dependendo da gravidade do quadro, mas quem necessita de um transplante de pele não pode aguardar”, pontua Chem. “Travamos uma batalha diária contra o tempo”, endossa o médico Ricardo de Lauro, que chefia a ala de queimados do Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, o Hran.  

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“O transplante de pele pode significar a diferença entre a vida e a morte do paciente”, sustenta o médico do Hran. Foi assim que ele e sua equipe conseguiram salvar o jovem Matheus Galvão, 19 anos, que, no dia 2 de maio deste ano, chegou desmaiado no hospital com queimaduras em 74% do seu corpo. “Pela altura e peso do rapaz, necessitávamos de 13 mil cm² de pele. Conseguimos apenas 1.420 cm²”, relembra o profissional. 

A pele veio do banco da Santa Casa de Porto Alegre, chefiada pelo doutor Chem. Na manhã da quarta-feira (25/9), minutos antes de entrar em uma cirurgia, o médico gaúcho enfatizou que “não é possível atender nem 20% da demanda que recebo para socorrer pacientes graves”. Somada à escassez de doações, há o processo de limpeza que demora 45 dias para deixar a pele em condições de ser transplantada.   

Curativo biológico 

Apesar de poder ser estocada por até dois anos, a pele doada não costuma passar mais de dez ou quinze dias no banco de Porto Alegre. “Tratamos 60 mil cm² por ano, mas a necessidade é infinitamente superior e não temos esse número, porque não é computado. Há quem nem solicite pela dificuldade que temos de fornecer e, se tivéssemos suficiente, pacientes menos graves poderiam ser tratados com maior eficácia”, salienta.  

Na manhã da entrevista, ele informou que estava cuidando simultaneamente de quatro pacientes para os quais seriam enviados lotes de pele. Eram um piloto de Recife, que teve de 80 a 90% do corpo queimado, dois pacientes de São Paulo e um de Santa Catarina. “Avaliamos de acordo com a gravidade do paciente e a disponibilidade do nosso estoque”, pondera. Ou seja, diariamente o profissional precisa decidir quem poderá ser ajudado. “Recebemos um pedido do Hospital de Pronto-Socorro e não pudemos auxiliar”, fala consternado. A unidade que não pode ser atendida fica a 2 km de distância da Santa Casa, também na capital gaúcha.  

No caso de Matheus, o paciente que sofreu o acidente no mês de maio, a pele recebida da Santa Casa foi transplantada no tórax. Os demais enxertos foram feitos de pele das coxas e do couro cabeludo do próprio paciente, locais esses que não estavam feridos. O médico Ricardo enfatiza que os transplantes são essenciais para pacientes com lesões graves. “É um curativo biológico, uma barreira que protege o interior do corpo do meio externo, contribuindo para diminuir a perde de líquidos e sais minerais e na proteção contra infecções, que costumam resultar na maior mortalidade de pacientes com grandes queimaduras”, explica.  

Em uma sala no terceiro andar do hospital em Brasília, um enorme quadro branco é atualizado com a situação de cada paciente internado ali. Todos têm data prevista de alta, que corresponde ao percentual de queimadura no corpo. “Precisamos recuperar 1cm² por dia. Se temos um paciente que queimou 40% do corpo, precisará, em média, de 40 dias de internação”, explica o profissional. É geralmente em torno desse percentual de queimadura em um adulto que o médico e sua equipe necessitam contar com envio de pele armazenada nos bancos localizados no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Paraná.  

Apesar de ter recebido bem menos pele do que precisava para tratar Matheus, a quantidade transplantada foi essencial para assegurar a melhora do paciente. “Eu sabia que estava entre a vida e a morte. Fiquei consciente quase todo o tempo depois que saí do coma, via minha mãe chorando e o Dr. Ricardo era muito sincero, mas não me deixava esmorecer, sempre me dando força”, conta o jovem. Depois de receber a doação, o estado geral do rapaz evoluiu rapidamente e o tempo de internação foi de apenas 35 dias.  

A dificuldade em manter os bancos com estoques suficientes tem, entre as causas, o preconceito em autorizar a doação desse tecido. “Era o que eu sentia quando meu filho, desde pequeno, dizia que queria ser doador”, diz Alcione, mãe de Matheus. “Eu nem queria conversar sobre o assunto com ele, mas não tive nenhum preconceito quando meu filho recebeu pele de um doador”, assegura a mulher. 

Tanto o médico do Hran quanto o da Santa Casa concordam que é comum enfrentar a dificuldade de os familiares autorizarem a retirada de pele, receosos de como receberão o corpo para o funeral. “É retirada uma lâmina, de 1 mm, de áreas como coxas e costas, que são enfaixadas”, explica o médico Ricardo. O corpo é preservado para que os familiares possam realizar as cerimônias de despedida do ente querido sem constrangimento. 

Aedo 

Hoje há mais de 43 mil brasileiros aguardando por transplante. Do outro lado, a cada 14 pessoas que poderiam ser doadoras, apenas quatro se tornam doadoras, muitas vezes, porque, em vida, a pessoa nem sequer havia manifestado essa intenção aos familiares, que, pela lei, têm a última palavra para efetivar a doação.

A juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Liz Rezende coordena o projeto Um Só Coração, de doação de órgãos. FOTO: Zeca Ribeiro/ Ag. CNJ

A Aedo é uma declaração da vontade do doador, registrada de forma eletrônica, simples e gratuita em um dos 8.344 cartórios de notas do Brasil e que inclui uma gravação em vídeo dessa manifestação. “Temos uma grande adesão dos profissionais da área de saúde que estão se cadastrando progressivamente para consultar a plataforma e verificar se a pessoa que faleceu é doadora, tendo um argumento importante para dialogar com a família e viabilizar a doação de órgãos”, diz a juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Liz Rezende, responsável pelo projeto no CNJ.

O acesso ao serviço pode ser feito pelo aplicativo do e-Notariado ou pela página da Aedo na internet. O site disponibiliza o formulário a ser preenchido mediante certificado digital notarizado – aqueles que não tenham o certificado podem solicitá-lo na mesma página. O formulário contém campos para informar os dados pessoais do solicitante, os órgãos do corpo que deseja doar e a escolha do cartório em que deseja registrar a autorização.  

O sistema irá gerar automaticamente a Declaração de Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano, que será assinada digitalmente pelo cidadão. Após a análise da solicitação pelo cartório, será agendada a sessão de videoconferência para a gravação da declaração. Também será necessário assinar digitalmente nessa etapa, com o mesmo certificado digital, concluindo o processo de emissão. 

“Caso a pessoa tenha dificuldade ou impossibilidade absoluta de acessar o sistema, ela pode procurar um cartório de notas e solicitar o acesso à plataforma do e-Notariado, porque ela tem uma impossibilidade de uso de recursos digitais ou de documento nato digital, que é importante e imprescindível para fazer a declaração eletrônica”, explica Liz Rezende. A qualquer momento, o doador que tenha autorizado a doação pode rever sua decisão e solicitar ao cartório a vontade de deixar de ser doador, caso queira.   

Acesse aqui o passo a passo para fazer a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo)

Final feliz 

O acidente que provocou as queimaduras em Matheus aconteceu no apartamento onde a família morava, na região administrativa do Itapoã, a 24 quilômetros do centro de Brasília. A troca de um botijão de gás por uma pessoa não qualificada colocou em risco, além da vida do rapaz, a de mais dois irmãos: Israel, de 18 anos, e Lucas, de 17 anos. Eles tiveram respectivamente 20% e 24% do corpo queimado. Os rapazes tentaram estancar o escapamento de gás de cozinha, mas em poucos segundos se viram em meio às chamas de um incêndio. Eles foram socorridos pelos vizinhos. 

Matheus Galvão, que teve queimaduras em 74% do corpo e recebeu transplante de pele, e a mãe, Alcione. Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

Alcione deixou o emprego e praticamente morou no hospital por um mês, desdobrando-se entre os leitos dos três filhos. Ela, que ainda tem um menino de três anos e uma bebê de nove meses, precisou deixar os pequenos sob os cuidados da cuidadora da creche onde deixava as crianças para trabalhar. Emocionada, com a recuperação dos filhos, atribui todo o sucesso à dedicação incansável dos profissionais de saúde.  

Atualmente, apenas Matheus ainda vai periodicamente ao hospital para sessões de fisioterapia, mas os cuidados com a pele são meticulosos, como o uso permanente de cremes e protetor solar: itens obrigatórios pelos próximos anos. Israel e Lucas já retornaram às aulas. Matheus, que havia começado há pouco tempo no primeiro emprego como repositor, não pode retornar. Ele tem se dedicado a estudar marketing digital para investir em uma nova carreira. “Quero trabalhar de casa, ainda convivo com algumas inseguranças”, diz.  

Sustentado pelo apoio psicológico que recebeu no hospital, assegura que sua visão da vida mudou. “Se antes eu já pensava em ser doador, agora não tenho nenhuma dúvida: quero ajudar a todos que eu puder”, garante o rapaz. A vontade do filho é compartilhada pela mãe que também se tornou doadora. 

Texto: Margareth Lourenço
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias

Fonte Oficial: Portal CNJ

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