Na tarde desta quinta-feira (10), segundo e último dia do Seminário Internacional Prova e Justiça Criminal: Novos Horizontes para o Reconhecimento de Pessoas, os participantes reunidos no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ) discutiram a qualificação da investigação e da produção de provas, o custo dos erros judiciais e o que se deve fazer, ou não, no procedimento de reconhecimento.
O encontro foi promovido pelo STJ, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O primeiro painel, mediado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca e pelo juiz auxiliar da presidência do CNJ Luís Lanfredi, abordou o esforço para aprimorar a investigação e a produção de provas. Ao iniciar o debate, o ministro destacou a importância de garantir um processo penal justo e eficaz, ressaltando a necessidade de capacitar todos os profissionais envolvidos para alcançar esse objetivo.
“Nós chegamos ao ponto em que, no processo penal brasileiro, temos que refletir sobre as garantias e os princípios constitucionais envolvidos e, ao mesmo tempo, vislumbrar o agressor, a vítima e a sociedade. Isso renasce com uma proposta de justiça restaurativa”, disse.
Reconhecimento de pessoas é um dos maiores desafios do sistema
O delegado Anderson Giampaoli relatou as iniciativas da Polícia Civil de São Paulo para reduzir os erros de reconhecimento e ressaltou a importância de uma investigação preliminar bem estruturada, afirmando que essa etapa deve ser conduzida de forma sistemática.
“Temos investido na formação inicial do policial, reformando a matriz curricular. Hoje, nessa nova matriz curricular, temos um eixo chamado provas dependentes da memória, em que nós trabalhamos não só o reconhecimento de pessoas, mas também técnicas de entrevista e questões sobre o depoimento especial. Assim, teremos policiais que sabem da importância de se ter um conjunto probatório completo”, afirmou.
Mais
investigação, menos preconceito: começa no STJ o seminário sobre reconhecimento
de pessoas
O secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Mário Sarrubbo, enfatizou a necessidade de uma Justiça ágil, para evitar que as vítimas só sejam chamadas a reconhecer seus agressores muito tempo após o crime. Ele disse que o reconhecimento é um dos maiores desafios do Sistema de Justiça brasileiro.
“O caminho nos parece ser a capacitação de todos aqueles que atuam no Sistema de Justiça, de advogados a policiais. Hoje, infelizmente, as polícias judiciárias sofrem com o déficit de meios e profissionais, o que leva os policiais a terminarem a investigação não da melhor forma, mas da forma possível. Quando o procedimento como um todo já começa viciado, ele possui uma chance muito maior de terminar com um erro judiciário grave, produzindo uma grande injustiça”, declarou.
Investigação precisa ser completa, exaustiva, imparcial e ágil
A promotora do Ministério Público de São Paulo Daniela Favaro comentou que, muitas vezes, os agentes do Sistema de Justiça utilizam as provas mais para convencer o juiz sobre a condenação ou a absolvição, quando o verdadeiro objetivo da prova deveria ser a busca da verdade. Ela afirmou que a investigação precisa ser completa, exaustiva, imparcial e, acima de tudo, ágil.
“O dever de investigar é uma obrigação de meio, e não de resultados, que deve ser assumida pelo resultado como dever jurídico próprio, e não como simples formalismo. O Ministério Público deve buscar a qualificação das provas. O MP deve lutar por uma persecução responsável, que busque a verdade real, fomentando políticas públicas estatais que supram eventuais deficiências que comprometem a eficácia das investigações. O MP não pode ficar inerte diante de falhas que podem ser corrigidas desde o início”, concluiu.
Diálogo entre os atores do Sistema de Justiça
Em seguida, Pedro Carriello, defensor público do Rio de Janeiro, apontou a importância do diálogo entre todos os órgãos que compõe o Sistema de Justiça: “Apesar do progresso, ainda temos muitos problemas com a forma como é feito o reconhecimento fotográfico. Por isso, temos que ter esse diálogo com o próprio CNJ, pois ele é um órgão de monitoramento, norteador e de transcendência daquilo que temos de melhor no processo penal e na Justiça brasileira”.
Ao encerrar o painel, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ressaltou que diversos fatores controláveis podem contribuir para erros de reconhecimento. Ele frisou a necessidade de constante vigilância sobre esse procedimento para minimizar equívocos.
“É preciso saber como foi feita a entrevista, quais foram as orientações passadas para o reconhecedor, se o reconhecedor foi induzido a achar que devia reconhecer alguém, a forma como o acusado foi apresentado – por exemplo, com algemas ou com a roupa da penitenciária”, explicou o magistrado.
Negra e vítima de erro do sistema de reconhecimento
facial
Mediado pelo ministro Og Fernandes e pelo conselheiro do CNJ Pablo Coutinho Barreto, o quarto painel do seminário contou com o relato virtual da psicóloga Daiane de Souza Mello. Em abril deste ano, ela participava de uma conferência sobre igualdade racial no Rio de Janeiro, quando foi abordada por agentes de segurança pública por ter sido erroneamente apontada como foragida da Justiça pelo sistema de reconhecimento facial do estado.
“Fiquei incrédula, irritada e assustada com a situação, por perceber como corpos negros, como o meu, são tratados pela sociedade. Eu me senti com a segurança em risco. O racismo institucional nos afeta o tempo todo, mantendo as mais diversas violências contra corpos negros, como o racismo algorítmico”, declarou.
e memória abrem debates no segundo dia do seminário sobre reconhecimento de
pessoas
Leandro Carneiro, perito da Polícia Civil do Distrito Federal, explicou de forma técnica como funciona o sistema de reconhecimento facial. Segundo ele, “a qualidade e a degradação das fotos alteram a eficácia desses algoritmos”. No entanto, o perito citou como exemplos positivos do uso desse recurso no DF a identificação de um grupo de estelionatários pela Polícia Civil e dos participantes dos atos antidemocráticos do Oito de Janeiro pela Polícia Federal.
“Fundada suspeita” tende a gerar prisões baseadas em preconceito
A diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Marina Dias, falou sobre o desenvolvimento do Projeto Prova Sob Suspeita, a partir do qual foi elaborado um caderno com a perspectiva da teoria crítica racial, que tem sido usado pela entidade em diversas formações. Ela criticou as abordagens policiais massivas, realizadas como parte de uma política de segurança baseada sobretudo no policiamento ostensivo.
“O procedimento tem como alvo preferencial jovens negros, e a Justiça tem falhado em exercer o controle constitucional das prisões ao não dar limites ao conceito da ‘fundada suspeita’, que gera inúmeras prisões arbitrárias realizadas com base em preconceito”, ressaltou.
Rafael Tucherman, advogado e diretor do Innocence Project Brasil, lembrou que, antes, o reconhecimento de pessoas era a prova principal do processo criminal, sendo feita de forma ilegal e informal. Atualmente, ele disse que esse cenário tem mudado, com a exigência de parâmetros legais para o reconhecimento. Ao falar sobre casos de inocentes presos apenas em função do reconhecimento no Brasil, Tucherman assinalou que, se outras provas tivessem sido produzidas, as prisões teriam sido evitadas.
Para ele, essa é a solução que deve ser adotada para evitar a condenação de inocentes, uma vez que “a própria resolução do CNJ e o Código Penal já alertam os juízes a se atentarem aos demais elementos probatórios – obrigação essa também compartilhada com a defesa”.
Uma pergunta que não quer calar
“Quanto Custa a Condenação de Uma Pessoa Inocente?” foi o tema do último painel do seminário. Para Daniela Madeira, conselheira do CNJ, esse assunto reflete imensamente dentro do Poder Judiciário.
O painel começou com a advogada Flávia Rahal, diretora do Innocence Project Brasil, fazendo algumas perguntas sobre o tema a Anna Vasquez, presidente da Innocence Network, ela própria vítima de erro judicial.
Falando por videoconferência desde os Estados Unidos, Vasquez contou que se tornou ativista após ver tantas outras condenações errôneas, que ela não podia ignorar pois sabia exatamente como as pessoas se sentiam. “No meu caso, a condenação foi baseada em uma ciência forense equivocada, e levou mais de 20 anos para que o erro fosse corrigido”, relatou.
Ela disse que não há muitos serviços de apoio para pessoas que passaram por erro judicial nos Estados Unidos: “Eu acredito que eles acham que, provada a nossa inocência, deveríamos estar bem, mas não é o caso. Estamos falando do que sofremos na prisão, do que minha família precisou passar. É um efeito que afeta as pessoas de diversas maneiras”.
Na opinião de Flávia Rahal, não há como aferir o custo de uma condenação errada, “porque não é somente o custo financeiro, mas o custo emocional. É o custo dessas famílias. A nossa história tem sempre um personagem que está fora da prisão e que é o motor da reversão, mas que se sente tão aprisionado quanto aquele que foi efetivamente condenado”.
A diretora do Innocence Project Brasil lamentou que até hoje não tenha havido uma ação de indenização procedente. “É com tristeza que eu digo a vocês que até hoje todas as nossas tentativas foram frustradas. Em nenhum dos casos do projeto o Tribunal de Justiça reconheceu o direito à indenização. Ninguém aqui está dizendo que o julgador quer intencionalmente errar, mas quem sofre o erro precisa ser reparado”, disse ela.
Máquina de prender alimentada por erros de reconhecimento
O jornalista Rubens Valente afirmou que, durante os anos em que trabalhou na cobertura policial, conheceu policiais e operadores do direito bem-intencionados, preocupados com a qualidade da prova. “Por outro lado, encontrei muitas dúvidas sobre alguns agentes públicos, em especial quando as investigações ganham os holofotes da mídia”, relatou.
Em 2021, o jornalista publicou a série de reportagens “Falhas em reconhecimento alimentam máquina de prisões injustas de negros e pobres no Brasil”, sobre cem casos de inocentes presos entre 1976 e 2020. Conforme enfatizou, “o reconhecimento incorreto está na base de 42 dos cem casos”.
Ele ressaltou que a imprensa erra profundamente quando narra certas investigações como casos acabados. “Precisamos atribuir essas informações, e não adotar como realidade aquilo que ainda está em andamento. É um erro grave de divulgação”, asseverou.
A diretora de promoção de direitos da Secretaria Nacional de Acesso à Justiça, Letícia Peçanha, respondendo à pergunta do tema do painel, baseou-se no princípio da intranscedência: “Será que a gente pode dizer que a condenação de um inocente não ultrapassa a esfera dessa pessoa e da família dela?”
Peçanha também tratou de iniciativas que estão sendo desenvolvidas. Uma busca produzir dados e evidências sobre violações institucionais de direitos humanos, para contribuir com a instrução de ações judiciais e buscar a garantia do direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação da violência institucional. “A outra seria uma cartografia social dos erros judiciais para a gente entender onde esses erros acontecem, com quem e por quê”, completou.
O ministro Rogerio Schietti Cruz encerrou o seminário destacando que é preciso que cada uma das instituições envolvidas no problema tenha a responsabilidade de reavaliar suas práticas e fazer um exame de consciência para mudar o quadro de tanto sofrimento retratado durante os dois dias do evento.
“O processo penal não se legitima pela autoridade, ele se legitima pela verdade. Nós precisamos melhorar a apuração da verdade no processo penal”, concluiu.
Clique na imagem para assistir à íntegra dos debates:
Fonte Oficial: Portal STJ