Após o nascimento, uma UTI móvel transportou Natan da vila indígena onde morava, no Amazonas, até a capital Manaus. Começava ali uma jornada de pouco mais de dois anos e algumas cirurgias até conhecer suas mães, a analista de qualidade Tamiris Machado Costa e a vendedora Natane Xavier de Oliveira.
À época aos 32 anos, o casal vivia em Santo André, no Grande ABC Paulista, e teve o primeiro contato com o filho por meio da busca ativa, ferramenta do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) que promove o encontro entre pretendentes habilitados e crianças e adolescentes que tenham tido todas as possibilidades de adoção esgotadas.
Foram quatro meses de contato virtual, em razão da pandemia, até o primeiro encontro presencial, em fevereiro de 2021, no abrigo que acolheu Natan em seus primeiros anos de vida, em Manaus.
Ele reconheceu Tamiris e Natane de imediato. “Assim que vimos o Natan pela primeira vez, sabíamos que era ele. Ele era o nosso filho. Eu desabei a chorar. Ele veio para o meu colo, depois passou para o da Tamiris. Foi um match perfeito. Ele estava esperando a gente mesmo”, relembra Natane.
Ao cumprir 30 dias de convivência, uma das etapas finais do processo de adoção, Natan se mudou com as mães para São Paulo. Os cuidados com a saúde da criança persistiram. Por causa de uma má-formação congênita no sistema digestivo, Natan se prepara para a sua 15a e possivelmente última cirurgia, às vésperas de completar 5 anos.
Apesar de precisar do auxílio diário de suas mães para trocar a bolsa de ostomia, dispositivo que ajuda Natan com o seu processo digestivo, os desafios de saúde não impediram a sua adaptação à família, à escola e a uma nova rotina de total autonomia, comum para a sua faixa etária.
“O Natan é muito persistente em tudo o que ele faz. Ele é uma criança diferente. Ele é muito guerreiro. Era uma criança que falavam que não ia andar, e ele anda, corre, pula. Se desenvolveu muito, já aprendeu a escrever”, conta Tamiris.
Amor na diferença
O período de adaptação, em São Paulo, não envolveu somente Natan. Tamiris e Natane também precisaram atravessar uma jornada até então desconhecida. “Houve um processo de conhecimento. Trouxemos ele para Santo André, um caminho totalmente diferente, cheio de medos e inseguranças, que não deixamos transparecer para que Natan se sentisse seguro”, diz Natane.
Para as duas mães, é importante entender que os filhos são pessoas com suas próprias histórias e características. “As crianças são seres humanos, não são bonecas que a gente põe e tira a roupa. O Natan, com 5 anos, já escolhe a própria roupa, tem angústias, pergunta o que é tristeza, questiona a vida. Ele já questiona também por que precisa fazer determinadas coisas e os amigos não, como por exemplo usar fralda e ir ao médico mais uma vez. O que falamos sempre, e hoje ele também repete, é que todos nós somos diferentes”, explica Tamiris.
Quando o assunto é diferença, a mãe Tamiris também faz referência à própria diversidade da família: “A Natane é uma mulher preta, de 1,80 metro, eu sou uma mulher branca, de 1,50 metro. E temos nosso filho, Natan, que é um menino indígena Tikuna”. A família também relata que busca reforçar as origens e identidade indígena da criança, que teve incluída a etnia na nova certidão de nascimento.
As mães também repetem frequentemente a Natan uma citação do livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” “O Natan é um menino brilhante, muito grato pela vida. O que deixo de legado para mães e pais que desejam adotar é: não se deixem abalar por qualquer tempestade. Depois da chuva, o Sol sempre volta a brilhar, trazendo um arco-íris de coisas boas”, conclui Natane.
Desafios da adoção
Apesar de descrever a experiência como transformadora, a família faz questão de ressaltar os desafios do processo de adoção e enfatiza a importância de compreender cada etapa e se preparar para a maternidade. Natane lembra que o processo de adoção é burocrático e que a busca ativa pode ser desafiadora.
“O processo é burocrático, mas essa burocracia é necessária. No início, questionamos isso, mas à medida que você avança, participa dos grupos, das palestras, passa a entender. Às vezes, a pessoa ou o casal não está realmente preparado para um filho adotivo. Esse é o erro de pular etapas. Respeitar cada fase foi a melhor coisa que fizemos. Foi difícil, exigiu motivação e muito preparo emocional”, relata Natane.
“A busca ativa é desafiadora. São crianças com múltiplas demandas, mas os grupos de apoio nos prepararam para isso. A adoção não é fácil, mas é possível. Temos a oportunidade de sermos transformadas e de transformar. Não acho que sentiríamos o mesmo em outra situação. No fim, você percebe que é 15% problema e 85% alegria. Hoje, o Natan é meu melhor amigo, meu parceiro”, reforça Tamiris.
Ela também destaca a importância da paciência. “Participar dos grupos de apoio à adoção é fundamental, assim como ler muito, se preparar e se atualizar, porque a maternidade é desafiadora.” Natane e Tamiris, que hoje estão divorciadas, também destacam a relevância de uma rede de apoio, especialmente emocional, tanto para a criança quanto para as mães.
“No Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, vemos histórias que mostram como a adoção pode criar laços profundos de afeto e superação. É um processo que envolve desafios, mas, quando respeitado em cada etapa, proporciona uma experiência de amor, crescimento e resiliência. É fundamental que as famílias se preparem adequadamente para a adoção, compreendendo que cada criança tem uma história e necessidades únicas”, explica a juíza auxiliar da presidência do CNJ, Rebeca de Mendonça Lima.
Hoje, no Brasil, há mais de 33.500 crianças e adolescentes acolhidos. Destes, 4.979 aguardam adoção, sendo 1.424 na busca ativa. Apesar da lista de pretendentes (35.655) ser maior do que de crianças e adolescentes que aguardam adoção, apenas 3,7% do grupo declara aceitar crianças com deficiência física, apenas 0,3% deficiências intelectuais, e 8,9% doenças infectocontagiosas. Quando o assunto são características étnico-raciais, apenas 2.092 dos pretendentes (4%) declaram diretamente aceitar crianças indígenas e outras 2.615 (5%) crianças pretas, já pardas são 10.259 (19,83%).
A idade também é um fator de peso, que influencia na extensão do tempo de espera para a adoção das crianças. Do total de crianças que aguardam uma família na busca ativa, pouco mais de 2% têm até 4 anos de idade, 46% têm entre 4 e 12 anos e 51% são maiores de 14 anos. Além disso, mais de 26% possuem alguma deficiência e quase 30% têm algum problema de saúde. Ainda, 52% das crianças e adolescentes são pardos e 19% pretos. Perfis que diferem dos mais buscados pelos pretendentes na fila de adoção.
A especialista de programa da Unidade de Governança e Justiça para o Desenvolvimento do PNUD, Andrea Bolzon, lembra que a busca ativa é uma ferramenta que impulsiona a adoção de crianças com esses perfis, mas exige que as famílias busquem preparo. “Da mesma maneira que há preparação para uma gestação, deve haver preparo para uma adoção. Nesse sentido, a adoção por busca ativa é uma ferramenta poderosa para garantir que crianças em situação de vulnerabilidade tenham a oportunidade de encontrar lares que as acolham com amor e dedicação, mas é essencial que as famílias compreendam que a adoção é um processo que exige paciência, preparação e respeito por cada etapa. Quando feito com responsabilidade, como no caso de Natan, o resultado é uma relação de puro afeto que transforma tanto as crianças quanto suas mães e pais”, afirma.
Sobre o SNA
Regulamentado pela Resolução CNJ n. 289/2019, o SNA foi criado em 2019 da união do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA). O sistema abrange milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, com uma visão global da criança, focada na doutrina da proteção integral prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Os maiores beneficiários do SNA são as crianças e os adolescentes em acolhimento familiar e institucional, que aguardam o retorno à família de origem ou a adoção.
O SNA possui um inédito sistema de alertas, com o qual os juízes e as corregedorias podem acompanhar todos os prazos referentes às crianças e aos adolescentes acolhidos e em processo de adoção, bem como de pretendentes. Com isso, há mais celeridade na resolução dos casos e maior controle dos processos, sempre no cumprimento da missão constitucional do CNJ.
Programa Justiça 4.0
Iniciado em 2020, o Programa Justiça 4.0 é fruto de um acordo de cooperação firmado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Conselho da Justiça Federal (CJF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu objetivo é desenvolver e aprimorar soluções tecnológicas para tornar os serviços oferecidos pela Justiça brasileira mais eficientes, eficazes e acessíveis à população, além de otimizar a gestão processual para magistrados, servidores, advogados e outros atores do sistema de Justiça.
Texto: Jéssica Chiareli
Edição: Vanessa Beltrame e Ana Terra
Agência CNJ de Notícias
Fonte Oficial: Portal CNJ