Com o avanço das inteligências artificiais criativas — capazes de compor músicas, gerar imagens, escrever textos e até criar roteiros cinematográficos — surge um dilema jurídico de grandes proporções: quem é o autor de uma obra criada por uma IA? E mais importante, quem detém os direitos patrimoniais sobre esse conteúdo?
A crescente sofisticação de modelos de IA generativa, como os utilizados em artes visuais, produção literária e composição musical, desafia as bases tradicionais do Direito Autoral e da Propriedade Intelectual, uma vez que essas áreas foram construídas com base na figura do criador humano.
No Brasil, a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é clara ao reconhecer como autor “a pessoa física criadora de obra intelectual”, o que automaticamente exclui as máquinas da titularidade dos direitos autorais. Contudo, o impasse começa quando se tenta definir a autoria de obras criadas com o auxílio de IA, especialmente nos casos em que a interferência humana é mínima ou inexistente.
Para o jurista Marcos Soares, editor do Portal do Magistrado, o tema exige um debate urgente e profundo. “Estamos diante de um novo paradigma. A inteligência artificial já não é mais apenas uma ferramenta auxiliar, mas sim uma entidade produtora de conteúdo original. O Direito precisa decidir se vamos tratar essas criações como obras protegidas, e, em caso positivo, quem terá os direitos: o programador? O usuário? A empresa desenvolvedora?”, questiona.
No âmbito internacional, o debate também é intenso. O Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos já negou o registro de obras geradas inteiramente por IA, enquanto o Reino Unido discute a possibilidade de conceder proteção sob um regime especial, atribuindo a autoria ao programador. Já o Parlamento Europeu propõe que os conteúdos criados por IA tenham uma proteção limitada e claramente distinguível das obras humanas.
Além da questão da autoria, surgem preocupações com violações de direitos autorais por parte das próprias inteligências artificiais, que muitas vezes são treinadas com grandes volumes de dados extraídos da internet, incluindo obras protegidas por copyright. Isso levanta dúvidas sobre uso indevido de material alheio, plágio automatizado e até a responsabilidade legal sobre infrações cometidas por algoritmos.
Outro ponto relevante é a transparência. Ferramentas baseadas em IA muitas vezes operam como “caixas-pretas”, dificultando a identificação das fontes utilizadas no processo criativo. A ausência de explicabilidade nos processos de geração de conteúdo pode tornar complexa a análise pericial em disputas judiciais relacionadas a autoria ou infrações de copyright.
A Propriedade Intelectual na era das IAs criativas terá de se reinventar. Soluções possíveis passam por modelos híbridos de autoria, licenciamento especial para obras geradas por algoritmos e até a criação de um novo regime jurídico voltado para obras tecnicamente assistidas, com regras próprias e limites bem definidos.
Como destaca Marcos Soares, “o Direito Autoral está sendo chamado a responder perguntas que nunca foram feitas antes. Se não houver atualização legislativa ou interpretação evolutiva, corremos o risco de tornar obsoleta uma das áreas mais fundamentais da proteção jurídica da criatividade”.
Neste cenário de transformação, o desafio do jurista é conciliar inovação tecnológica com os princípios fundamentais da propriedade intelectual. A era das inteligências artificiais criativas já chegou, e com ela, a urgência de repensar o que significa ser autor no século XXI.