A estrutura familiar brasileira passou por profundas transformações nas últimas décadas, e o Direito das Famílias tem sido constantemente desafiado a acompanhar essas mudanças. Um dos temas mais emblemáticos dessa evolução é o reconhecimento legal da multiparentalidade — situação em que uma criança pode ter mais de dois pais ou mães registrados oficialmente, refletindo vínculos afetivos e socioafetivos que extrapolam o modelo tradicional de família.
O marco jurídico desse reconhecimento está na valorização do afeto como elemento formador da parentalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana e a proteção integral da criança como princípios fundamentais. A partir disso, a jurisprudência passou a admitir, especialmente a partir dos anos 2000, que o vínculo parental não se limita ao biológico ou ao jurídico, mas pode também ser afetivo. É o caso, por exemplo, de padrastos ou madrastas que assumem, de forma contínua e responsável, o papel de pai ou mãe ao longo da vida da criança.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento favorável à multiparentalidade, reconhecendo que o afeto e a convivência podem gerar efeitos jurídicos equivalentes aos do vínculo sanguíneo. A possibilidade de constar mais de dois genitores no registro civil da criança reflete, assim, uma abertura do sistema jurídico para a pluralidade das formas de constituição familiar.
Esse reconhecimento traz efeitos práticos relevantes: multiparentalidade significa não apenas o direito ao nome e ao registro civil, mas também obrigações e direitos como pensão alimentícia, herança, convivência familiar e poder familiar compartilhado. Ainda assim, o tema suscita debates. Há quem questione os limites dessa flexibilização, alertando para possíveis conflitos entre os genitores em decisões cotidianas ou judiciais envolvendo a criança.
Marcos Soares, jornalista do Portal do Magistrado, ressalta que o reconhecimento da multiparentalidade é um reflexo da sociedade em transformação. “O Direito das Famílias não pode mais ser guiado por modelos fixos. Ele deve proteger os vínculos reais que estruturam a vida das pessoas. A multiparentalidade reconhece que o amor, o cuidado e a responsabilidade exercida no dia a dia podem ser tão ou mais relevantes que a origem biológica. O Judiciário tem atuado como protagonista nesse processo, mas o tema ainda carece de regulamentação mais clara no campo legislativo”, afirma.
Hoje, cada vez mais ações judiciais buscam o reconhecimento de pais socioafetivos, inclusive em arranjos familiares diversos, como os compostos por casais homoafetivos, famílias recompostas ou arranjos multiparentais por livre escolha. O cenário revela uma tendência jurídica que valoriza a realidade afetiva vivida pela criança, acima de formalismos.
O desafio do Direito, nesse contexto, é garantir segurança jurídica sem engessar as novas formas de família. E, sobretudo, assegurar que a proteção da criança continue sendo o norte de toda interpretação legal. Afinal, como já reconheceu o STF, onde houver afeto, deve haver Direito.