O avanço acelerado das tecnologias de inteligência artificial (IA) aplicadas à neurociência tem colocado em pauta um novo desafio para o Direito: a proteção da mente humana diante de possíveis manipulações cerebrais por meio de algoritmos. O debate já é tratado em fóruns internacionais sob a ótica do neurodireito — campo interdisciplinar que conecta Direito, neurociência e ética, buscando proteger os direitos fundamentais frente a tecnologias capazes de interferir diretamente no cérebro humano.
No Brasil, o tema ainda é incipiente, mas cresce a preocupação com os riscos associados à chamada neurotecnologia — sistemas de IA que interpretam, influenciam ou simulam processos cerebrais. São exemplos as interfaces cérebro-máquina, dispositivos de leitura neural e tecnologias de estimulação cerebral com fins comerciais, médicos ou até mesmo voltados ao aumento da performance cognitiva.
Do ponto de vista jurídico, a principal questão é: como garantir que o ser humano continue no centro das decisões e que sua autonomia mental seja preservada?
Segundo Marcos Soares, jurista e editor do Portal do Magistrado, o avanço dessas tecnologias exige uma atualização urgente do marco jurídico. “Estamos diante de um novo tipo de violação de direitos fundamentais, que não passa mais pelo corpo físico, mas pela integridade psíquica. A manipulação ou extração de dados cerebrais sem consentimento pode violar o direito à privacidade mental, um desdobramento moderno do princípio da dignidade da pessoa humana”, afirma.
A Constituição Federal já garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) também oferece salvaguardas importantes ao estabelecer regras para o tratamento de dados sensíveis — o que incluiria, em tese, dados neurais. No entanto, especialistas alertam que a LGPD pode ser insuficiente diante de tecnologias que atuam em tempo real no sistema nervoso central, especialmente se voltadas para indução de comportamento.
A discussão internacional sobre os chamados “direitos neurais” (ou neuro-rights) já está em curso em países como o Chile, que aprovou uma emenda constitucional reconhecendo a proteção da atividade cerebral como direito humano. Entre os direitos propostos estão: o direito à identidade mental, à privacidade cerebral, ao livre-arbítrio e à proteção contra viés algorítmico em sistemas que interagem com o cérebro.
Para Marcos Soares, o Judiciário e os legisladores brasileiros devem se antecipar ao risco de um “vácuo normativo” e pensar em regulamentações específicas que abordem o uso de IA no campo da neurociência. “Estamos falando de tecnologias que podem acessar, alterar ou até induzir pensamentos. Isso exige um novo olhar do Direito, que inclua não apenas a responsabilidade civil e penal, mas também o fortalecimento de princípios constitucionais como a autodeterminação informativa e o consentimento informado”, pontua.
A fronteira entre o lícito e o ilícito em neurotecnologia é tênue, e cabe ao Direito traçar esses limites de forma clara. À medida que a IA avança sobre o território da mente, cresce a urgência de garantir que a proteção jurídica acompanhe essa evolução, assegurando que a inovação tecnológica não ultrapasse os direitos invioláveis da consciência humana.