Situações de calamidade pública, como desastres ambientais, pandemias ou tragédias em massa, desafiam não apenas a logística dos serviços públicos, mas também os fundamentos mais sensíveis do Direito: o respeito à dignidade humana, mesmo após a morte. Nesse contexto, o tratamento jurídico dos restos mortais das vítimas torna-se uma questão central, que mobiliza direitos constitucionais, princípios éticos e protocolos humanitários.
A Constituição Federal de 1988 assegura, no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Esse princípio irradia efeitos mesmo após o falecimento, protegendo o direito das famílias ao luto e à memória de seus entes queridos. É nesse contexto que se insere o debate jurídico sobre a adequada identificação, preservação, sepultamento e, quando possível, restituição dos corpos às famílias.
Em casos de calamidade, a velocidade das operações de resgate e o volume de vítimas muitas vezes impedem a adoção de ritos funerários tradicionais. A legislação brasileira, como a Lei nº 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) e a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), determina que nenhum sepultamento pode ser feito sem a devida identificação e registro civil da morte, salvo em situações excepcionais previstas em lei. Mesmo nesses casos, exige-se esforço máximo para a posterior identificação e comunicação às famílias.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em decisões anteriores, que o direito ao luto é expressão do direito à dignidade da pessoa humana e da proteção da família, assegurados nos artigos 5º e 226 da Constituição. A ausência de informações sobre os corpos ou o sepultamento sem consentimento pode configurar violação a esses direitos, ensejando responsabilidade civil do Estado.
Além disso, organismos internacionais como a Cruz Vermelha e a ONU estabelecem diretrizes humanitárias que reforçam a obrigação de tratamento digno dos mortos em conflitos armados ou desastres. Essas normas influenciam diretamente o ordenamento jurídico interno, especialmente no âmbito dos Direitos Humanos.
Casos emblemáticos, como o rompimento da barragem em Brumadinho (MG) ou a pandemia de COVID-19, escancararam os limites e desafios da atuação estatal nesses momentos críticos. A judicialização de pedidos de indenização, ações por danos morais coletivos e demandas de reconhecimento formal das vítimas têm se tornado cada vez mais comuns.
Para Marcos Soares, jornalista do Portal do Magistrado, a justiça deve estar preparada para lidar com essas dores coletivas de maneira sensível e eficiente. “O luto não é apenas um processo psicológico. É também um direito. Quando o Estado falha em garantir que as famílias saibam onde estão seus mortos, ou como foram tratados, ele fere profundamente o tecido social e a confiança nas instituições”, pontua.
A discussão sobre o direito à memória também ganha força nesse cenário. A preservação de locais de tragédia, a criação de memoriais e a manutenção de registros públicos sobre as vítimas são formas jurídicas e simbólicas de reconhecer a dor e garantir que os fatos não sejam esquecidos.
Diante dos desastres que marcam a história recente do país, o Direito precisa continuar se adaptando para proteger, com respeito e humanidade, aqueles que já não podem falar — mas cuja ausência ainda grita por justiça e reconhecimento.