Com o avanço da tecnologia e a digitalização da vida cotidiana, cresce também o número de pessoas que acumulam bens digitais: contas em redes sociais, carteiras de criptomoedas, arquivos armazenados em nuvem, domínios de sites, contratos eletrônicos e até obras de arte em NFTs. Esse novo cenário levanta uma questão ainda pouco regulamentada, mas juridicamente relevante: como lidar com o patrimônio digital após a morte do titular?
A chamada herança digital vem se consolidando como um ramo emergente do Direito das Sucessões. No entanto, o Brasil ainda não possui uma legislação específica sobre a destinação de bens digitais no processo de inventário, o que tem levado tribunais e doutrinadores a buscarem soluções a partir da analogia com o Código Civil, da interpretação de cláusulas contratuais de plataformas digitais e dos direitos fundamentais à intimidade e à memória.
A principal dúvida gira em torno de quais bens digitais são patrimoniais — e, portanto, transmissíveis — e quais são personalíssimos, cuja herança não é possível. Uma conta bancária digital ou uma carteira de criptoativos, por exemplo, tem valor econômico direto e pode ser incluída no espólio. Já o conteúdo de mensagens privadas ou dados em redes sociais envolve o direito à privacidade e à proteção da memória do falecido, sendo mais complexo juridicamente.
Além disso, muitos contratos de serviços digitais incluem cláusulas que impedem a transferência da conta ou preveem o encerramento automático após a morte do titular. Essa prática, comum em redes sociais e plataformas de armazenamento em nuvem, muitas vezes entra em conflito com o direito sucessório garantido pela Constituição Federal e pelo Código Civil.
Segundo o jurista Marcos Soares, editor do Portal do Magistrado, é necessário atualizar o arcabouço legal brasileiro para refletir a realidade digital. “O patrimônio hoje é híbrido. Não faz mais sentido ignorar ativos digitais no processo de inventário. O Judiciário tem um papel fundamental nesse momento de transição, até que o legislador estabeleça critérios claros sobre o que pode ou não ser herdado no mundo digital”, aponta.
Na ausência de norma específica, especialistas recomendam que o titular digital adote medidas preventivas, como a criação de um testamento digital, deixando instruções claras sobre senhas, acessos e a destinação de seus bens virtuais. Algumas plataformas, como o Google, já oferecem ferramentas de gerenciamento de conta inativa, permitindo designar herdeiros digitais.
No campo jurisprudencial, decisões ainda são escassas, mas há precedentes em que familiares conseguiram acesso judicial a perfis digitais e carteiras de ativos cripto, desde que comprovada a titularidade e o valor patrimonial. Em casos envolvendo redes sociais, tribunais têm reconhecido o direito à preservação da memória, impedindo a exclusão de conteúdos em determinadas circunstâncias.
A tendência é que o Direito das Sucessões evolua para abranger, de forma expressa, o patrimônio digital, equilibrando o direito à herança com a proteção da personalidade, e respeitando tanto a vontade do falecido quanto os direitos dos herdeiros.
Enquanto isso, o desafio permanece: como garantir que o legado digital de uma vida inteira não desapareça com a senha esquecida?