O crescimento desordenado das cidades brasileiras, aliado à histórica exclusão social, resultou em milhares de ocupações informais nos grandes centros urbanos. Esse fenômeno coloca em evidência o debate sobre o direito à cidade — princípio garantido pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) — e a responsabilidade do Estado, inclusive do Poder Judiciário, na promoção da regularização fundiária urbana como instrumento de justiça social e garantia de direitos fundamentais.
O direito à cidade vai além da simples moradia: trata-se do acesso igualitário aos serviços públicos, transporte, saúde, educação, cultura e infraestrutura urbana. A regularização fundiária, nesse contexto, é uma ferramenta essencial para a inclusão de comunidades inteiras que vivem à margem da formalidade, muitas vezes privadas de saneamento, energia elétrica regular, e até de segurança jurídica sobre a posse de seus imóveis.
A Lei nº 13.465/2017 modernizou o processo de regularização fundiária urbana e rural no Brasil, instituindo a Reurb (Regularização Fundiária Urbana), com procedimentos diferenciados para núcleos urbanos informais, reconhecendo tanto ocupações de interesse social (Reurb-S) quanto de interesse específico (Reurb-E). Essa legislação deu base para que municípios promovam a titulação e incorporação de áreas ao tecido urbano regular, respeitando critérios técnicos, ambientais e sociais.
Entretanto, a efetivação desse direito depende também do posicionamento do Poder Judiciário, especialmente diante de conflitos fundiários. Em diversas ocasiões, o Judiciário tem atuado para evitar reintegrações de posse sumárias, determinando a análise do contexto social e a mediação de soluções coletivas. Essa postura, inspirada na função social da propriedade e na dignidade da pessoa humana, fortalece a tese de que a justiça deve ir além da legalidade formal e garantir a inclusão urbana como direito.
Marcos Soares, jornalista do Portal do Magistrado, observa que a atuação judicial na regularização fundiária revela uma mudança de paradigma. “O Judiciário deixou de ser apenas um árbitro de litígios patrimoniais para assumir um papel estruturante na efetivação dos direitos urbanos. É fundamental que as decisões levem em conta o princípio da função social da propriedade, previsto na Constituição, e a vulnerabilidade das populações envolvidas. Não se trata de ignorar o direito de propriedade, mas de equilibrá-lo com a justiça social”, explica.
Mesmo com avanços legislativos e judiciais, a regularização fundiária ainda enfrenta entraves como a falta de estrutura técnica nos municípios, disputas políticas e resistência de setores privilegiados. Ainda assim, o Judiciário, ao agir de forma proativa e sensível ao contexto social, pode contribuir para transformar a paisagem urbana brasileira, reconhecendo o direito à cidade como um direito coletivo, indivisível e essencial para a cidadania plena.