Nos últimos anos, o conceito de família no Brasil tem passado por uma profunda transformação. Um dos debates mais recentes gira em torno do reconhecimento jurídico das chamadas famílias multiespécie — arranjos afetivos compostos por seres humanos e seus animais de estimação, considerados membros legítimos do núcleo familiar. Essa nova realidade, impulsionada por mudanças culturais e decisões judiciais pontuais, levanta discussões sobre até que ponto o Direito deve acompanhar a evolução dos vínculos afetivos contemporâneos.
O termo “família multiespécie” vem ganhando espaço no Judiciário, especialmente em ações que envolvem guarda de pets após o rompimento de casais, direito à visitação, divisão de despesas com cuidados veterinários e até mesmo indenizações por danos morais em caso de maus-tratos. Tribunais brasileiros, como o TJ-SP e o TJ-MG, já reconheceram expressamente o valor afetivo dos animais no seio familiar, em decisões que colocam os pets em patamar próximo ao dos filhos.
A Constituição Federal de 1988 não limita o conceito de família aos modelos tradicionais. Ao contrário, ao tratar da família como base da sociedade (art. 226), o texto abre margem para interpretações mais amplas e protetivas. O próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e, mais recentemente, acolheu formas familiares não convencionais com base na dignidade da pessoa humana, no afeto e na pluralidade dos vínculos.
Nesse contexto, defensores da tese afirmam que o reconhecimento das famílias multiespécie é um avanço civilizatório, por legitimar relações afetivas reais que ultrapassam as fronteiras biológicas ou jurídicas tradicionais. Apontam, ainda, que a Constituição protege a dignidade dos animais e que os laços criados entre humanos e pets têm efeitos concretos sobre a saúde emocional e o bem-estar das pessoas.
Contudo, há quem veja nesse movimento um exagero do Poder Judiciário e uma extrapolação do papel do Direito de Família. Críticos sustentam que o reconhecimento jurídico de vínculos com animais pode desvirtuar o conceito jurídico de família e abrir precedentes perigosos, tornando o ordenamento vulnerável à banalização das relações familiares e à judicialização excessiva da vida cotidiana.
Para Marcos Soares, jornalista do Portal do Magistrado, o tema exige cautela. “O reconhecimento das famílias multiespécie é sintoma de uma sociedade em mutação, mas é preciso lembrar que o Direito opera com categorias técnicas. Ainda que o afeto com os animais seja legítimo, a formalização jurídica dessas relações deve respeitar os limites constitucionais e não suprimir o debate legislativo. O Judiciário pode sinalizar caminhos, mas não pode substituir o papel do Parlamento em temas tão sensíveis”, analisa.
A discussão sobre as famílias multiespécie ainda está longe de um consenso. Enquanto algumas decisões judiciais apontam para uma ampliação do conceito de família, outras reforçam a necessidade de regulamentação legislativa. O certo é que a forma como o Direito irá lidar com esses novos arranjos será determinante para definir os limites — ou a elasticidade — do conceito de família na sociedade contemporânea.